terça-feira, 22 de maio de 2007

Buda e o otário

Siddhārtha Gautama, popularmente conhecido como Buda (na verdade, ele foi "um" Buda, ainda que o Buda Supremo, fundador do budismo), foi um líder espiritual na Índia há muitos séculos. Pregava um caminho nobre que deveria ser percorrido por boas ações, bons pensamentos, boas palavras, boas intenções, bem, vocês entenderam...

O nome Gautama ressurgiu recentemente no mais novo escândalo de corrupção do governo Lula (alguém está contando?). Bem, poderia aqui partidarizar a discussão, mas seria uma insensatez. Escândalos de corrupção aconteceram em governos anteriores e, pasmem, deverão acontecer muitas vezes no futuro, também.

Cabe debater os porquês deste governo ter sido marcado por tais escândalos — o que pode ser tanto por haver maior incidência em si, por conta de alianças políticas muito mais amplas, frouxas e menos programáticas, ou pelo fato dos governos anteriores saberem acobertar seus escândalos de maneira muito mais eficiente, quem sabe.

Mas, muito mais do que isso, cabe uma reflexão séria de por que ainda parecemos tolerar tanto o fenômeno da corrupção no nosso País, e como podemos erradicá-la — ou pelo menos diminuí-la a níveis internacionalmente toleráveis (Corrupção Zero é um slogan bonito, mas nem a Finlândia chegou lá, ainda que esteja em situação muito melhor do que a brasileira).

Uma coisa para mim parece clara: por mais que fiquemos indignados com esses repetidos escândalos, ainda somos não apenas tolerantes a eles, como muitas vezes coniventes, quando não cúmplices ou mesmo autores de corrupção ativa ou passiva. Talvez você e eu nunca tenhamos enchido nossas cuecas de dólares, mas sei de muita gente que "molhou, molha ou molharia" a mão de um Policial Rodoviário para fazer vista grossa de seu excesso de velocidade — sim, às vezes é o próprio policial que propõe esta troca vantajosa para ambas as partes (naquele momento), mas extremamente desvantajosa para a sociedade como um todo.

Não é só isso: é a pessoa que usa seus contatos dentro de uma repartição pública para "agilizar" sua documentação e furar a fila; é o motorista que passa seus pontos na carteira para a tia que tem habilitação mas não dirige mais; é quem compra uma mercadoria e não pede nota fiscal!

Ah, que exagero, né?! Tá certo que há um imposto devido no preço do produto pago. E que sem a Nota Fiscal o vendedor pode mascarar a venda daquele produto e não recolher o imposto. E que a apropriação privada de recursos públicos é parte integrante da definição de corrupção. E que tendo participado e presenciado essa omissão, fomos coniventes e cúmplices de um caso de corrupção. Mas isso é "peixe pequeno", é "situação comum", é "prática usual", não tem nada a ver essa situação com os escândalos descobertos pela Operação Navalha...

Agora vem o "otário" do título. O otário sou eu. Quando passo minutos discutindo com a pessoa do caixa que diz que o "talão de nota fiscal acabou e ainda não chegou o outro" ou que "o sistema que emite a nota fiscal eletrônica caiu", e as pessoas na fila atrás de mim me olham feio — ou quando peço nota e a pessoa do caixa me pergunta "de qual valor?"; quando fico com meu carro parado no farol vermelho e vejo os carros do meu lado passando incólumes; quando tomo farol alto de um carro 50% acima do limite de velocidade pedindo para eu sair da sua frente; quando tento avisar um fumante que ele não pode fumar dentro daquele shopping ou daquela estação do metrô, e ele me olha feio, quando não engrossa e quase parte para a briga. Enfim, quando parece que "seguir as regras" (sejam elas as leis do Estado ou normas básicas do bom convívio social) é algo mais difícil ou menos valorizado do que violá-las, sinto-me um otário.

Mas vou continuar a sê-lo, pois para mim é muito mais difícil fazer o oposto. Não sei bem o porquê, sério. Mas sinto um enorme sentimento de culpa, não durmo direito, não tenho "paz de espírito" quando sei que estou fazendo algo de errado. Às vezes tento criar justificativas para tais atos, mas muitas vezes nem eu mesmo me convenço, e aí aqueles sintomas aparecem. É algo de criação? Deve ser, lembro sempre do meu pai dando o bom exemplo em muitas situações, algumas delas até eu não me acho "otário" o suficiente para fazê-las — dificilmente eu me abaixo para pegar o lixo que outra pessoa acabou de jogar no chão para jogá-lo no lixo, coisa que ele vive fazendo, às vezes mesmo enfurecendo o "porcalhão", que fica extremamente constrangido quando o vê fazendo isso na sua frente, sem meu pai dar um pio ou lição de moral na pessoa.

Mas se os pais de uma pessoa não foram capazes de passar esses valores morais para ela, é bem provável que ela também não seja capaz de passar isso a seus descendentes também. Isso quer dizer que a "imoralidade" (sem conotações puritanas) é hereditária. Como resolver isso? Na Escola? Não imagino um professor sequer que tenha ensinado algum aluno a roubar, a matar etc. Não está aí o problema, imagino. O problema é muito maior, e muito mais generalizado. E simplesmente não sei, sinceramente, como resolvê-lo. Como "recuperar" uma geração inteira de brasileiros que, apesar de ficar furiosa ao ver o pedaço de ponte que a Gautama construiu no interior do Maranhão ligando nada a lugar nenhum, é incapaz de perceber as inúmeras concessões diárias que faz, as pequenas corrupções do dia-a-dia?

Ficarei muito grato se vocês tiverem sugestões a fazer neste sentido, e pudessem colocá-las nos comentários. Ajudariam-me a reconquistar minha fé num Brasil melhor — às vezes fico completamente desanimado com as parcas perspectivas de uma mudança profunda, e no meu tempo de vida, no País...

6 comentários:

Anônimo disse...

Caro Storino,

Compartilho de sua indignação, de muitas de suas práticas e de sua dúvida sobre como podemos mudar isso.

Parece-me que qualquer transformação mais geral passa exatamente pelas pequenas ações cotidianas e pelo estímulo à reflexão, ao debate e às práticas baseadas na ética. Acredito na capacidade ética humana de refletir, de buscar e de orientar-se pelo mais belo e pelo mais justo.

E não me sinto nem um pouco otária ao pagar uma multa devida, pedir nota fiscal, não falar ao celular ao dirigir ou cumprir regras que muitos descumprem. Muito pelo contrário!!

Anônimo disse...

Olá Storino!

Muitas vezes também fico pensativa e desanimada diante da nossa postura passiva! Minha preocupação não chega aos mínimos detalhes, pois acho que devemos nos preocupar com um problema de cada vez, considerando a magnitude e o impacto de cada um; mesmo porque, "Corrupção Zero é um slogan bonito", porém utópico, certo?!
Acredito que a heterogeneidade cultural existente na população brasileira gera diferentes conceitos para o que é certo e errado. Culturas diferentes, atitudes diferentes. Aquilo que consideramos "imoral" pode ser considerado "moral" ou simplesmente pode não ser considerado por outro grupo de pessoas. Por isso, concordo quando você coloca que o problema é muito maior do que somente a oferta de educação.
Será que incentivar a discussão entre diferentes grupos da sociedade sobre a importância de "fazer o que é certo", ajuda a resolver este problema? Na verdade não sei. Até hoje não consegui pensar em algo que pudesse sugerir um plano de ação concreto.

Sadao disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Sadao disse...

Ótimo texto, "ácido, sarcástico, recheado de ironias e trocadilhos", gostei!

Para contribuir com a reflexão, chamo a atenção para:

- As ações e fatos contrários ao relatado. Não seria o caso de reconhecer que "há um outro lado da moeda"? Se há certa banalização da corrupção e da falta de ética, não seria o caso de destacar o que seja exceção?

- Não acredito que as pessoas "são naturalmente" corruptas. E nem mesmo que queiram ser a priori. Isso seria denigrir os seres humanos! E, claro, não podemos no isentar das situações que relatou. Entretanto, se fomos capazes de construir isso, acredito que sejamos capazes de desconstruir e reconstruir algo melhor.

- Sou cético quanto a posturas individualistas, somente. A mudança consistente, a meu ver, passa por ações coletivas. Talvez essa seja uma pista para algumas das suas indagações.

- Nem tudo são flores, mas elas existem e, talvez, devam ser cultivadas!

Compartilho da sua reflexão, principalmente como docente. Sinto-me limitado, porém encorajado, a seguir adiante, tentando contribuir para melhorar a postura ética dos alunos, assim como a minha.

Abraços!

Anônimo disse...

Prezado Fabio,
Sua indignação teve eco! Pensar-se como otário por fazer as coisas "certas" soa absurdo!
Gostaria de inverter o seu raciocínio para construir outra imagem da situação. Imagine-se morando num barraco ao lado de um imenso e luxuoso prédio do bairro do Morumbi. "Como é possível alguém com tanto dinheiro?", você pensaria. Mas, como um morador de barraco que frequentou a escola pública lembraria de suas leituras de Sheakespeare, para quem "por trás de toda a fortuna há sempre um crime". Então, você entenderia que o problema não é ético, por uma razão muito simples: fazer as coisas tal como estão, já definidas e estabelecidas por lei ou costume (institucionalizadas, para utilizar a linguagem geveniana) não é o mesmo que fazer a coisa "certa"!? O mundo, tal como está, não pode ser o resultado de uma transgressão da "verdadeira ética" da sociedade... porque dizer isto é colocar-se na posição de quem sabe qual é a verdadeira ética!!? Aí sim estaríamos passando por otários, ao aceitarmos um tal discurso! Creio que a solução do problema que vc apresenta passa pela capacidade de compreender os outros, sua forma de agir, de inventar maneiras de subverter aquilo que não pareça correto... O problema disso é: mesmo que você tenha feito "Doutorado Total" jamais conseguiria se colocar no lugar do morador do barraco... as diferenças irredutíveis nos colocam problemas insolúveis, a gente pode ir tentando, mas é mais prudente ter certeza de que não saberemos resolvê-los.
Abs Fabio Meira

Larissa disse...

Meu amigo Storino, que saudade!

Gostei muito do seu texto e queria lhe dizer que se agir corretamente é ser otário, tenho orgulho de ser otária e de ter um amigo otário também.

Sei que o mundo está com os valores completamente invertidos e que a ética usada hoje é a 'ética da situação' ou 'ética do momento' (que de ético não tem absolutamente nada), mas mesmo assim sou muito otimista em relação à humanidade.

Nós, otários, que somos a minoria hoje, não podemos desanimar, esmorecer, afinal temos uma missão a cumprir, um papel a desempenhar nessa sociedade, que é fazermos o melhor que pudermos para que a humanidade evolua.

Loucura achar que eu ou você podemos fazer algo tão grandioso? Eu não acho e acredito verdadeiramente que somos capazes e, mais ainda, somos responsáveis por isso.

Se fomos agraciados nessa vida com uma consciência mais elevada do que a maioria da população, temos a obrigação moral de fazer uso dela em prol de toda a humanidade, mesmo que esta não entenda e não nos valorize.

O ditado "uma andorinha só não faz verão" é o mais mentiroso que já ouvi, pois existe apenas para alimentar o comodismo humano e fazer com que cruzemos os braços por não nos acharmos capazes de agir sozinhos.

Eu acredito no seu potencial, eu acredito no meu potencial e no de muitos otários como nós que estão espalhados pelo Brasil afora e acredito que cada pequena ação que fazemos repercute positivamente no universo e contribui para a transformação de toda a humanidade.

Por isso, meu amigo, não desista! Eu sinto orgulho de ser sua amiga e de saber que ainda existem pessoas como você neste mundo.

Um beijo em seu coração,

Larissa Sato

"O homem é do tamanho daquilo que se atreve a fazer" (Jorge Angel Livraga)

"Por uma coisa eu lutaria até o fim, tanto em palavras com em atos se eu pudesse - que se nós acreditássemos que devemos tentar descobrir o que não é sabido, seriamos melhores e mais corajosos e menos preguiçosos do que se
acreditássemos que aquilo que não sabemos é impossível de ser descoberto e que não precisamos nem mesmo tentar" (Sócrates)